Uma das melhores coisas é ter uma gama de coisas pequenas
que só fazem sentido pra você, e de repente elas começam a se desenrolar e
começam a fazer sentido para outras pessoas ou elas se revelam cada vez mais em
outras coisas pequenas, e assim vão se unindo às outras coisinhas, até que
entendemos seus sentidos, e torna-se uma coisa grande, ao menos dentro de nós.
Causo 1. No meu primeiro ano da faculdade percebi que de
fato me identificava com a literatura portuguesa. Com ela veio uma ótima professora
que era doce, simpática e carismática na mesma proporção da seriedade que
realizava seu trabalho. Fez-me perceber o que é afinal ter referências em
literatura, cultura e o que é unir teoria à literatura e fazer com que uma área
responda à outra, de verdade, sem enganação ou delírio excessivo.
Dito isso, devo citar também meu encantamento talvez na
mesma intensidade com a literatura africana, esse se passou em Coimbra. Só em
2013. Para uma determinada aula tive que ler o conto "Estória da Galinha e do Ovo" de
Luandino Vieira. Li e reli esse conto sabe-se lá quantas vezes. Me senti uma
grande idiota por nunca ter lido literatura africana e ter deixado passar
histórias incríveis como essa.
Passado uns semestres,
há um mês mais ou menos, tive uma única aula com essa professora que está
relacionada diretamente em minha memória com o início da faculdade e todo o poder
de descobrimento desse período. E nem pude acreditar quando ela disse que
trabalharia na sala de aula os significados daquele conto de
Luandino Vieira. O momento em que as pequenas felicidades abstratas que menos fazem
sentido em nós passam a se encaixar como se realmente fossem peças. Tive a aula do conto certo com a professora certa, se eu fosse montar essa grade não ficaria melhor.
Causo 2.
Quando eu estava no ensino médio, me deu a louca de ler
Guimarães Rosa, ouvi dizer para começar dos contos. Li Sagarana e depois
procurei ler Manuelzão e Miguilim, que não consegui terminar nem a primeira parte. Motivo: não me lembro de
ter sofrido tanto com um personagem como sofria com a vida de Miguilim.
Criança que não é tratada como criança, que não é poupada do trabalho, da
responsabilidade e o pior, do sofrimento. Deixei o livro de lado.
Anos depois, começo a trabalhar com crianças. Agora tenho
essa obrigação de ter que parar de ser tão objetiva, esquecer a lucidez e
tentar me aproximar ao máximo da imaginação, da poesia, da inocência que ronda
a cabeça de uma criança, mas, sejamos sinceros, também de seus complexos e
problemas.
Pois bem, também há
poucas semanas, em uma aula única de início de semestre na faculdade, tive uma
aula sobre o olhar infantil em obras literárias. Só pelo título fiquei
empolgada, era disso que estava precisando. Mas quando a coisa está bem feita
quero ver quem desamarre: a obra analisada foi exatamente Manuelzão e Miguilim para essa
desconstrução do mito da infância perfeita que por lei é uma fase sem
preocupações e que tem que deixar saudades na vida de uma pessoa. Miguilim é uma criança, além de sua vida difícil soma-se a isso os anseios naturais da pouca idade, que naturalmente poucos veem e ignoram suas necessidades.
Fui contemplada com esse esclarecimento do meu sofrimento de
anos atrás, me lembrei do personagem e ele enfim foi encaixado dentro da minha
cabeça, seja pela teoria ou pela prática.
Adoro essas coisinhas que só fazem diferença para mim e que
por isso me fazem tanto sentido.
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