quinta-feira, 27 de março de 2014

Pela enganação

A literatura que revisita a história me agrada muito. Quando digo isso não me refiro aos clássicos romances históricos, mas aos romances que levam como pano de fundo algum momento da história e que nem sempre seus argumentos são verdades, porque, uma vez que quem conta é quem manda, a imparcialidade não existe e o tom é dado pela literatura e suas lindas voltas narrativas.

Me lembro de Incidentes em Antares, em que  metade do livro é narrando a história do Brasil, até chegar ao homem de São Borja, Getúlio Vargas, que de alguma forma faz parte do livro. Há também Leite Derramado, esse livro sim, dá voltas, voltas e voltas até nos amarrar por completo na sua narrativa. E ficamos assim, dependendo das mãos do autor para ligar a ponta da história do velho que delira e nos conta a história de sua ilustre família e de seus romances com a outra ponta, a história do Brasil, o plano de fundo ideal para quem delira e narra absurdos atrás de absurdos, de modo que as duas histórias ficam ligadas o tempo todo ou se não se justificam. 

Agora estou terminando a leitura de A Gloriosa Família, livro do angolano Pepetela. Esse escritor é daqueles que nasceu com o dom de contar histórias, quando li Mayombe, em um fôlego só, já me ficou claro o dom narrativo de Pepetela e mais do que isso, como ele me agradou com a história de seu país narrada por suas personagens.

Em Gloriosa Família - o tempo dos flamengos, o plano de fundo são os sete anos da invasão holandesa em Angola, então colônia portuguesa. De certo modo o espaço é um lugar que sempre ouvimos falar, mas nunca pensamos de fato nele: afinal, de onde e como vinham os escravos pro Brasil? Pois, Baltazar Van Dum é um dos comerciantes deles. Baltazar e toda família Van Dum (que vai da casa grande até a senzala) vive sempre em meio a empecilhos, de modo que Baltazar sempre se mantém em apuros de um dos lados do poder. Isso porque é holandês porém vive tanto tempo pelo mundo e mesmo em Angola, que acabou se tornando um católico, de forte relações com portugueses. Baltazar então é comerciante de escravos, holandês e vive onde A Companhia das Índias Ocidentais, a grandona holandesa do comércio no tempo das navegações, comandava a economia. Seria fácil viver assim se não fosse católico, com uma esposa portuguesa e mais, falante de português.

Na verdade eu vejo Baltazar como um homem comum de todos os tempos: alguém que nunca pode viver só de uma ideia, porque ele mesmo, comerciante de escravos, tem que aceitar romances de seus filhos com negras, tem que casar sua filha com oficial calvinista e etc. Como se é até hoje com aquela história de que não se pode cuspir pra cima  ou, pra ficar nesses ditados escatológicos, cuspir no prato que comeu.

Mas eu estava mesmo era dizendo sobre a narrativa, como toda essa história que se passa entre Luanda, Massangano, os escritórios da Companhia das Índias Ocidentais ou no reino da rainha que num prelúdio feminista quer ser chamada de rei Jinga é nós contada: por meio do escravo que tem como função seguir Baltazar. Ele foi presente do Rei Jinga, então mesmo na sua condição de escravo, ele é visto como um troféu, como um sinal de importância de seu dono.

Esse escravo, que sabemos aos poucos sobre sua particular história, é extremamente observador. Sabe dizer que o filho de Van Dum, Ambrósio, vai dizer algo importante só por seu hábito de coçar a garganta antes de iniciar uma fala. Sem dizer que por acompanhar seu dono o dia todo, seja em reuniões ou conversas em bodegas, ele guarda segredos de negócios a família. Há momentos da leitura em que agradeço Jinga por ter dado a Baltazar um escravo tão curioso que, como ele mesmo diz, estica as orelhas ao máximo pra poder ouvir o final de uma história e tem grandes divagações que nos dá um panorama político da época. De fato, seu dono está perdendo um grande conselheiro.

E nós ganhamos principalmente um grande narrador, um narrador que bem sabe de suas condições e de todas as injustiças dela. Às vezes sentimos o ódio ou a tristeza pela vida que tem, mas também há, e na sua maioria, o descaso, a ironia e a alfinetada pra cima dos brancos que bem sabemos que muitas vezes não enxergam o óbvio. 

A narrativa aguçada tem grandes marcas de oralidade, fazendo no alto da erudição de curiosidades históricas nos lembrar que aquilo é um relato que ele não estudou ou leu em bibliotecas, mas ouviu de seu dono dizer a alguém ou alguém dizer a seu dono e, pronto, já temos a simpatia por ele.
Na verdade, na contracapa da edição que estou lendo há a história real do livro: parece que foi inspirada por um livro histórico ou coisa assim. E quando digitei o título no Google apareceram inúmeros trabalhos acadêmicos fazendo alusão ao método narrativo da obra. Não li, não quero saber. A minha verdade é a verdade que esse escravo narra desde 1648 e que agora adio o término pra não perder a companhia. 




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